Tempos de mergulhar nos livros e nas leituras


Cecilia Silva-Díaz, editora de Ekaré, docente, investigadora e coordenadora do Master em Livros e Literatura para crianças e Jovens da Universidade Aberta de Barcelona; conversou com Trina Oropeza, fundadora e diretora do IMAGO Arte em Ação, sobre a leitura em tempos de quarentena. O registro da conversa foi publicado pela Revista Emília. 

Leia abaixo ou pelo site da Revista Emília.


Publicado pela Revista Emília em 16 de junho de 2020.

 

 

Estamos em um momento que poderia ser uma grande oportunidade. Uma oportunidade para praticar a leitura profunda. Refiro-me a leitura em que nos submergimos no mundo ficcional e nos transportamos para além do aqui e agora. É uma leitura diferente da que fazemos quando navegamos pelas telas, aqui há uma ordem autorizada: um começo, um nó e um final.

Ingressar em um mundo ficcional não é tão fácil como a propaganda da leitura nos faz pensar com seus lemas de que ler é maravilhoso, um prazer, uma forma de viajar e de abrir janelas. Tudo isso pode ser verdade, mas poder ler dessa forma prazerosa requer esforço, requer atenção, requer dedicação. Ler é uma prática.

 


Matías retrata a Penélope. Rocío Martínez.

 

Antes dessa crise, quando o mundo andava muito mais acelerado do que está nesta quarentena, nos queixávamos de não poder encontrar o sossego para ler dessa forma. Nesse “planeta nervoso”, nas palavras do escritor e jornalista inglês Matt Haig, em que vivíamos antes do confinamento, saltávamos de um site a outro entre notícias de última hora, twitters, posts, enquanto realizávamos várias tarefas ao mesmo tempo.

Como peixes em um aquário, picotávamos leituras breves respondendo aos estímulos das redes, é a metáfora que Bruno Patino utilizou para descrever esta forma de leitura em seu livro A civilização do peixe vermelho. Estávamos acostumados a ler muito, mas de outra forma. Com as telas aprendemos a ler em diagonal, sobrevoando o texto para buscar a parte da informação que necessitamos, deglutindo listas rápidas, e a prestar atenção de forma parcial em distintos dispositivos ao mesmo tempo.

Ler com profundidade implica entrar no argumento e seus matizes; no caso da literatura implica entrar no mundo da ficção e deixar de lado os estímulos externos para viver uma experiência única, que é uma experiência corporal, em que as emoções são reais e o coração bate mais rápido. É uma atividade sustentada que ocupa toda nossa atenção. Quando você faz isso é uma maravilha, uma viagem a outro lugar, como diriam os mediadores de leitura; mas para alcançar esse desfrute, precisa atenção o que hoje é muito difícil. A atenção é um bem escasso.

A leitura atenta nos permite viver a leitura, nos compenetrarmos no mundo ficcional e também tomar distância para analisá-lo. Participar dessa forma é muito difícil. O confinamento pode ser o momento para dar uma oportunidade a essa forma de leitura.

Neste momento há uma supersaturação de ofertas nas telas para as crianças: a escola, as aulas de piano, ginástica e as múltiplas opções de entretenimento audiovisual que ocorrem online. Percebo certo cansaço diante da vida virtual. É possível que este momento ajude a nos reencontrarmos com os livros e com a leitura literária. É possível que agora sintamos falta, mais do que nunca, desse refúgio de paz. Talvez seja possível aproveitar esse momento de tédio com as telas, esse excesso de oferta pode dar à leitura profunda um lugar em nossas vidas. Se trata de um lugar delicioso, diferente, tranquilo.

 

Ler é uma prática

Ler é uma prática como fazer ginástica, meditação ou fazer mindfullness: é algo que desfrutamos e nos faz bem, mas se não o preservamos e protegermos pode desaparecer da vida atropelado pelo imediatismo. Quando quero ler, sou eu que tenho que criar as condições: desligo o telefone, me afasto da tela do computador. Quando não estávamos confinados, era difícil encontrar um lugar para a leitura profunda em nossa vida cotidiana.

Não se trata de ler como obrigação, mas se propor e fazê-lo com convicção. Se trata de dar-lhe importância e incorporar a leitura na rotina familiar, como o banho ou o jantar.

Inclusive nestes dias que estamos mais disponíveis, seria bom dedicar algum momento para a leitura em família. Se queremos ajudar as crianças a ler dessa forma, temos que estar convencidos de que vale a pena. E isso sem sermões, nem solenidade.

O escritor inglês Aidan Chambers disse uma vez que se fosse ministro da educação, faria uma lei em que todas as escolas seriam obrigadas a ler durante quinze ou vinte minutos todo dia. Não só as crianças. Todos: o cozinheiro, o secretário, o jardineiro e os professores. É uma ideia que daria bons resultados.

 


Miguel Vicente Pata Caliente
. Orlando Araujo. Ilustrações de Morella Fuenmayor.

 

Por que não copiamos a ideia e estabelecemos um momento diário de leitura em casa? Se conseguimos ler em família, cada um seu texto, depois podemos comenta-lo na mesa: Por que escolhemos esse livro? Você o recomendaria? Me empresta? Se trata de abrir um espaço à leitura na rotina da casa: uma leitura sem nenhuma outra expectativa que não seja a de desfrutar e a possibilidade de compartilhar. Desses momentos surge o prazer de ler, a prática leitora.

Tudo depende da idade e da capacidade leitora dos integrantes da família.

Pode ser quinze minutos ou uma hora, mas melhor quinze minutos com vontade do que uma hora obrigada. Não se deve pedir nada em troca. Não faz falta um resumo, nem precisamos comprovar que as crianças compreenderam o que foi lido. Não precisa perguntar retoricamente se gostaram ou o que entenderam. Essa necessidade de controlar dos adultos elimina o desejo de ler.

Temos que pensar como os terapeutas, aqueles que buscam gerar uma reflexão interna e pessoal: eles fazem poucas perguntas, pontuais e precisas. Em vez de perguntar, se trata de deixar um canal aberto para falar sobre o que lemos. A melhor maneira é abrir esse canal com nossas palavras. Em lugar de pedir às crianças que falem sobre o livro, podemos servir de modelo nós mesmos falando.

Explicar, por exemplo, porque escolhemos ler esse livro, fazer referência as histórias nas conversas da vida diária, fazer conexões entre o conto e a vida, falar sobre livros e sobre as emoções que provocam, recordando se um personagem se parece a algum membro da família, trazendo alguma frase ou alguma situação da vida. Por exemplo, em nossa família, ante os obstáculos repetimos a frase: “Por cima não podemos passar, por baixo não podemos passar. De modo que teremos que atravessar” do livro We’re going on a Bear Hunt [Vamos caçar um osso] de Helen Oxenbury e Michael Rosen. Tudo isso abre um canal e mostra que o que acontece nas histórias tem relação com a vida. Não podemos esperar que desde o princípio nossos filhos façam essas conexões entre a literatura e a vida, mas se introduzirmos a prática da leitura e servirmos de modelo sobre como falar naturalmente dos livros, pouco a pouco as conversas serão mais ricas e espontâneas e as histórias estarão cada vez mais presentes em nossa casa.

Elogiar e falar sobre as virtudes de ler, sem que as crianças nos vejam desfrutar da leitura é um caminho inútil. Em troca, praticar a leitura, promovê-la porque damos valor a ela, dando-lhe um lugar na vida, procurando formas de compartilha-la e mostrando como ela acompanha a vida são estratégias que funcionam. A chave está em ler juntos, em compartilhar leituras, em conversar sobre livros. O lugar da leitura não é um altar ao qual se presta reverência. Os lugares são a cozinha, o banheiro, a sala de casa, onde ler faz parte da rotina. Queremos que os livros sejam parte de nossa vida. Por isso quando se pode tem que, além de ir ao mercado, ir à livraria ou à biblioteca para olhar livros.

 


Un abuelo, sí
. Nelson Ramos. Ilustrações de Ramón París.

 

Se possível, não deixemos de explicitar o valor sentimental e cultural que os livros têm para nós. No caso da Editora Ekaré, depois de 40 anos de atividades, já são várias gerações que leram os nossos livros. Temos avós que leram quando jovens La ratoncita presumidaque ainda é uma delícia escutar. As histórias são também um legado que se transmite: “Estou lendo esse livro para você porque sua avó lia para mim quando eu era criança e me encantava”.

 

A leitura em voz alta

Ler em voz alta é uma maneira muito boa de compartilhar leituras. Esses dias podem ser uma oportunidade para recuperar essa intimidade com as crianças maiores. Quando as crianças aprendem a ler de forma autônoma, em lugar de terem alguma recompensa, as crianças se veem privadas da leitura compartilhada. E algumas se ressentem disso. Como já leem sozinhas ninguém lê para elas e perdem esse momento de prazer compartilhado. Temos que seguir acompanhando o leitor infantil e seguir fazendo leituras compartilhadas.

Leia você, como adulto, ou que leiam eles, um parágrafo, um capítulo, pergunte o que perguntaria a um amigo: “está bem escrito? Por que você gosta? O que está lendo? Leia um parágrafo para ver se gosto”. Compartilhar não deve ser em uma direção única, a do adulto que sempre quer recomendar; é possível que agora tenhamos mais tempo para ler esses livros que nossos filhos leram de forma autônoma. Compartilhar leituras lendo em voz alta, tal como se faz em dupla, é algo muito agradável, íntimo e com forte carga emocional. Essa prática não se deve perder e não se deve privar dela os que já leem de forma independente.

Por outro lado, a leitura antes de dormir geralmente é uma leitura tranquila que reafirma e dá lugar à noite e suas inseguranças. Agora temos a oportunidade de ler em outros momentos e poderíamos provar leituras mais ativas. Há que cultivar a resiliência leitora. Já dissemos que entrar no universo ficcional não é fácil. Podemos ajudá-los a ser mais resistentes, adverti-los das dificuldades: no princípio pode parecer difícil, mas tem que ter paciência. Vamos tentar dar uma oportunidade a esse texto, o que não quer dizer que não se possam abandonar textos que não gostamos.

 

Adolescentes não leitores

As novelas gráficas como Al sur de la Alameda poderiam servir para que alguns adolescentes se aproximem da leitura, pela possibilidade de ler os códigos. Ou livros muito ilustrados, mas com conteúdo interessante, como por exemplo, Animales domésticos, um livro com muito humor, às vezes cáustico, mas muito refinado.

Álbuns como Raposa, apesar de ser muito curto, desenvolve um drama shakespeariano, sobre a inveja e a saudade. É comovente. Os bons álbuns podem ser motivadores para ler.

 

 

Explorar os limites

Não podemos ter medo que as crianças explorem limites com as histórias. O que aconteceria se ultrapassassem esse limite? Limites que na vida real não seriam desejáveis ultrapassar, podem ser ultrapassados com a literatura. Assim podemos ver o que sentem os personagens em situações complicadas, de maneira segura. Essas experiências literárias podem nos ajudar a gerenciar os medos e as ansiedades.

Através das histórias exploramos a doença, a morte, a relação com os outros, com os companheiros de classe, com os que gostamos, com os que nos incomodam… nos ensinam a olhar para dentro. A olhar o que sentimos.

Assim os livros se transformam em espelhos ou em janelas. Olhar nossas reações ante o narrado e ver como a resolvem os personagens. Tudo aparece codificado nas histórias, nos contos de fadas e também nas histórias contemporâneas: o protagonista pode superar uma situação difícil, talvez necessite da ajuda de outros, talvez o faça trabalhando em grupo ou graças a sua força e perseverança.

 

O aprendizado narrativo

Para aprender a pensar as crianças necessitam de narrações consistentes, com um começo, um desenvolvimento e um desenlace. A leitura em telas diversas, com seus hiperlinks e itinerários por demanda, não oferece a coerência e coesão que permite que uma boa história se instaure na memória.

Ekaré, significa história ou narração e como editora nos importa que a história seja consistente, bem contada e articulada. Recomendo todo o catálogo de Ekaré nesse sentido. Seja de humor ou drama, está lá a intenção de contar uma boa história.

O álbum dá a oportunidade às crianças de serem leitores. Ler antes de ler.

 

Finais tristes e temas variados

As histórias não têm porque terminar sempre bem. Às vezes, a exigência narrativa não permite um final feliz. E isso importa. A verossimilitude é muito importante e não deve ser posta em risco transmitindo uma mensagem otimista. Mas o fato de que um final não seja feliz, não quer dizer que deva ser niilista ou sem esperança. Em geral, os bons livros para crianças oferecem uma fenda de esperança. Inclusive, algo tão frágil como a possibilidade de que a vida continue. Quase todos os temas podem ser tratados, se a história é boa e o tema é bem abordado pode ser uma maneira de compreender o mundo em que nos movemos e as possibilidades que ele oferece.

 

A leitura em tempos difíceis

Temos que fazer as conexões entre a vida e os livros. A literatura nos fala de nossa experiência. E das experiências de outros. Lá fora, há alegrias e há bastante sofrimento. A empatia com as experiências de outros nos humaniza e a literatura oferece muitos modelos para ter empatia com os personagens e suas situações.

 


Nico y Pato. Bernat Muntés.

 


Texto publicado no blog de Ediciones Ekaré, em 1º de maio de 2020.


TRADUÇÃO LURDINHA MARTINS