Dez perguntas para Bernardo Toro


Quando nosso país atinge a desoladora marca de 500 mil mortes provocadas pelo Covid-19, não podemos deixar de compartilhar não apenas nossa solidariedade, indignação e tristeza, mas também nossas reflexões em torno de uma compreensão mais ampla desse momento que vivemos e de possíveis caminhos no que diz respeito às práticas educativas. Temos acompanhado a dificuldade vivida pelas escolas parceiras e suas equipes, assim como pelas crianças e suas famílias, afetadas direta ou indiretamente por tudo isso. Por isso, recomendamos a leitura da entrevista com o filósofo colombiano Bernardo Toro para o Itaú Social.


Veja publicação original de 03/05/2021 no sita do Itaú Social.


Dez perguntas para Bernardo Toro

Por Raquel Dommarco Pedrão, Rede Galápagos, São Paulo

Filósofo, mestre em pesquisa e tecnologias educacionais, estudioso de física e matemática, decano acadêmico da Pontificia Universidad Javeriana de Bogotá e diretor da Fundação Avina na Colômbia.
O filósofo e pensador da educação fala sobre aprendizagem e organização social na pandemia, mostra que altruísmo e solidariedade podem ser aprendidos e defende a construção de um sistema educativo de alta qualidade que funcione para todas as pessoas da sociedade

Bernardo Toro: “A transformação educativa, para que seja verdadeira, não é uma questão de combinar presencialidade com o digital. É uma questão de que os dois só funcionam se os adultos são capazes de transmitir ao mesmo tempo para a próxima geração o que querem que ela aprenda”.


Um dos mais importantes pensadores sobre educação e democracia da América Latina, Bernardo Toro é muito identificado com o paradigma do cuidado, tema muito presente em suas reflexões. Em 2012, durante painel sobre educação na conferência Rio+20, o filósofo generosamente pediu à plateia uma salva de palmas ao brasileiro Leonardo Boff, que estava ao seu lado na mesa e que seria o responsável pela criação desse conceito de cuidado, tão caro a Bernardo e para o qual ele chama especial atenção nestes tempos de pandemia. A relação do filósofo com o Brasil, além da inspiração em Boff, inclui sua atuação como consultor de reformas educacionais no estado de Minas Gerais. E recentemente foi renovada com sua participação, on-line, em evento que promoveu a discussão sobre o trabalho em rede, essencial para fortalecer instituições que atuam em um mesmo território, principalmente no atual contexto de crise.

Toro participou do painel “Aprendizagem na pandemia e a importância da atuação das organizações da sociedade civil (OSCs)” no Encontro Nacional Experiências em Rede: práticas educativas e colaborativas entre as OSCs na pandemia, em 7 de abril de 2021, que reuniu virtualmente representantes da equipe do Itaú Social, seus convidados e especialistas em educação. Destaque nessa discussão, a necessidade de atuação em rede é reforçada pelo filósofo diante do atual momento de incerteza. “Pela primeira vez o interior da casa se transformou no núcleo universal das pessoas”, diz. “E nenhuma família do mundo estava preparada para receber o mundo dentro de casa.” Nesta entrevista, Bernardo Toro fala sobre educação, democracia, inteligência solidária e organização social ao refletir sobre o que a sociedade vem aprendendo — e o tanto que ainda falta aprender — sobre o cuidado de si, da casa comum e do outro.

Notícias da EducaçãoQuando fala sobre o paradigma do cuidado, você costuma usar uma frase que atribui a Leonardo Boff: “Ou aprendemos a cuidar, ou todos pereceremos”. Depois de mais de um ano vivendo uma pandemia global, estamos aprendendo a cuidar melhor uns dos outros?

Bernardo Toro  Primeiramente, é preciso ter em conta que a pandemia é um impacto social que não depende do comportamento humano em sua origem. Ou seja, é o que tecnicamente chamam de choque externo à espécie — e isso é um comportamento distinto de quando fazemos algo que depende da nossa vontade — por exemplo, uma crise econômica ou uma crise política. A pandemia, por ser um fator externo ao ser humano cujo comportamento não conhecíamos, gera uma atitude de incerteza que o ser humano não pode controlar, a não ser, inicialmente, com o conhecimento. A dificuldade é que não estamos administrando um risco, mas sim uma incerteza, o que é uma coisa muito diferente, porque, quando está administrando um risco, você cria uma estratégia contra ele, o que supõe que saiba que, se aplicar a estratégia, o problema será resolvido.

Quando enfrenta um fenômeno de incerteza, que você não sabe como se comportará, entramos num campo distinto. E aí o primeiro passo é tratar de entender. Fomos muito bem, em primeiro lugar, em entender rapidamente como poderíamos nos proteger. É uma grande descoberta saber que, se você lava as mãos, cobre a boca continuamente e fica a uma distância de mais de um metro, a probabilidade de contágio é muito baixa. Essas três normas foram um grande descobrimento para toda a espécie humana. Se não fosse por isso, os mortos da pandemia hoje seriam muitos mais, multiplicados por uma cifra realmente alta. No entanto, ainda não entendemos suficientemente como o vírus se comporta, e por isso as estatísticas que tivemos não são tão úteis, quer dizer, os mortos de hoje não garantem os mortos de amanhã, os números de amanhã, certo? — porque estamos num campo de incerteza. Entramos no problema da vacina, vamos ver o que acontece com ela, se todos vamos fazer a coisa direito — se a vacina funciona, entramos numa estratégia de controle, no momento estamos numa estratégia de incerteza. Com todos esses antecedentes, vamos à sua pergunta e ver o que aprendemos com isso. Primeiro, o que aconteceu foi que tudo o que estava lá fora chegou às casas. À casa chegaram a escola, o supermercado, a cozinha, o descanso, a distração, ou seja, todo o cosmos que estava fora da casa a pandemia colocou para dentro. O interior da casa se transformou no núcleo universal das pessoas. Isso nunca tinha acontecido. E nenhuma família do mundo estava preparada para receber o mundo dentro de casa. Creio que é possível dizer que em um ano de pandemia as famílias aprenderam muito sobre como coordenar todos os elementos — educação, saúde, diversão, psicologia, trabalho, nutrição —, tudo dentro de casa ao mesmo tempo. Esse é o primeiro aprendizado.

“O vírus nos ensinou que o que faz a realidade social são as transações emocionais, políticas, econômicas, culturais que realizamos uns com os outros continuamente em uma sociedade”

A segunda coisa que o vírus nos ensinou é que o importante numa sociedade são as transações; nos ensinou que sem gente a igreja não é nada, que o teatro não é nada, que o estádio não é nada, que o shopping não é nada sem as pessoas. Aprendemos que o que faz a realidade social são as transações emocionais, políticas, econômicas, culturais que realizamos uns com os outros continuamente em uma sociedade. E isso nos ensinou a sentir falta das boas trocas, a sentir falta dos bons encontros e começamos a valorizar a amizade e a família, muito. Até aí, fomos bem. A esperança era que descobríssemos a possibilidade de uma solidariedade mundial diante desse problema. E aí não nos saímos bem. Definimos a pandemia em termos nacionais, fechamos as fronteiras e, em vez de ajudarmos uns aos outros para evitar perder, por exemplo, os trabalhos, decidimos fechar as fronteiras, nos assustar e olhar para o diferente com medo porque poderia nos contaminar. E agora com a vacina ficou ainda mais claro: em vez de tentarmos criar um grande fundo mundial, unir todos os laboratórios de produção de vacinas, unir todas as patentes para garantir que todos os países do mundo pudessem hoje estar vacinando a toda a velocidade, entramos num mercado capitalista de forte demanda, o que fará com que muitos países só consigam se vacinar lá por 2023. Isso significa que ainda não aprendemos a fazer políticas globais de humanidade.

Desenvolvemos algumas políticas globais de mercado que às vezes respeitamos. Mas não fomos capazes de entrar num acordo com respeito à saúde, ou seja, a OMS não tinha força, não tinha capacidade de articular todos os políticos mundiais na função de salvar a humanidade. Hoje, aprendemos três coisas: um, temos que proteger a infraestrutura digital acima de todas as coisas para um problema futuro; dois, temos que dar muito poder à OMS, e o diretor da OMS precisa ser um político de altíssimo reconhecimento para poder conciliar regras internacionais; e três, distinguir que saúde é diferente de doença, de remédio, e do que é preciso cuidar na saúde dos povos para que a medicina possa funcionar. O que está acontecendo na maioria dos países neste momento? As pessoas estão perdendo a saúde, as unidades de cuidado intensivo não dão conta. A princípio o que aprendemos foi que quanto maior a saúde de um povo, mais fácil é dar o remédio necessário; quanto menor a saúde, nenhum sistema de medicina é capaz de fazer alguma coisa. E precisamos começar a ensinar, a comunicar isso desde já a todas as gerações.

“Quanto maior a organização da base, maior a proteção dos direitos das pessoas e melhor o comportamento da sociedade”

Notícias da Educação — Há algum comportamento ou prática social colaborativa que chamou sua atenção em 2020?

Bernardo Toro   que mais me chamou atenção não foi um comportamento ou prática, mas um fato concreto: descobrimos a importância do Estado. Ou seja, caiu por terra toda aquela luta liberal pelo Estado pequeno, que não se mete em nada. Resolver grandes problemas da vida humana requer Estados confiáveis, com poder econômico e com poder político para poder tomar as decisões adequadas. Também aprendemos que se esse Estado não tem uma grande visão democrática, uma grande visão humanitária e coletiva, pode usar medidas excepcionais para tirar as garantias democráticas e aumentar, digamos, características de uma tirania, esse tipo de coisa. Porém, o que mais me surpreende é a capacidade de muitos setores de apoio, sobretudo nos estratos populares. As comunidades aprenderam a se organizar para ver se poderiam maximizar as ajudas. Mas aí descobrimos uma coisa, que nossa sociedade, nossos estratos populares, as camadas pobres, têm um baixo nível organizacional.

O que descobrimos também é que precisamos recuperar as organizações de bairro, as organizações de base das comunidades. Quanto maior o nível de organização de base das comunidades, é mais fácil os apoios grandes do Estado ou da sociedade chegarem rapidamente aos mais necessitados. Mas por que isso acontece? Nos anos 1960 e 70 a América Latina desenvolveu muito sua organização de base — organizações de base conseguiram derrubar ditaduras. No caso do Brasil, as comunidades de base da Igreja Católica eram enormes, atuantes e se apoiavam. Precisamos recuperar essas organizações de base, sejam da Igreja, da arte, do esporte, da cultura, da ciência, ou o que seja, não apenas devido ao problema da pandemia, mas porque quanto maior a organização da base, maior é a proteção dos direitos das pessoas, maior é a autorregulação, melhor é o comportamento da sociedade. Vimos que havia muita solidariedade, mas que não havia condições institucionais para que essa solidariedade fosse oportuna, rápida e chegasse a quem mais necessitava.

“Os países precisam começar a desenvolver, em todos os níveis, para crianças de classe alta, média, baixa, distantes ou próximas, um enfoque pedagógico de trabalho em grupo cooperativo”

Notícias da Educação — As gerações mais jovens se viram muito afetadas pelos eventos recentes porque incluem precisamente o grupo como maior contingente em idade escolar. Muito se tem especulado sobre os efeitos a longo prazo para a sua saúde mental e para a aprendizagem. Qual a sua opinião?

Bernardo Toro — Em educação aconteceu o que já sabíamos. A América Latina tem dois ou três sistemas educativos que funcionam com qualidades distintas. Um sistema urbano para famílias de alta renda ou renda média, um sistema do Estado e um sistema rural, de qualidades distintas. Isso impediu que a América Latina entendesse que o desenvolvimento político, o econômico e o social estão totalmente ligados à qualidade dos sistemas educativos. Foi evidenciado que a desigualdade do sistema educativo é muito alta, não apenas pela qualidade, mas pelo acesso. Descobrimos que mais da metade da população da América Latina não tem acesso à comunicação digital, ou seja, em termos de internet segura, não de internet esporádica. Simplesmente ampliamos o abismo, pois as crianças das classes altas não tiveram problemas por várias razões: tinham internet de alta velocidade; os seus entornos são amplos e estão enriquecidos com múltiplos estímulos, pessoas com boa formação, bibliotecas, materiais; e finalmente as crianças de classe média e de classe média alta sabem para que estão estudando, não estão se perguntando “o que vou fazer na vida?”. Para as crianças de classe média para baixo o problema é diferente: simplesmente ficaram atrasadas. Aqui na Colômbia, por exemplo, já foram feitas as provas do Estado e o abismo cresceu expressivamente. Tudo baixou, mas essa desigualdade aumentou. A medição total baixou totalmente, mas as crianças de camadas populares baixaram muito mais. Isso é evidente no mundo todo. Que efeito vai ter esse dano? Ainda não sabemos. Em educação só é possível saber se uma decisão, ou um fato, fez efeito dentro de dez ou vinte anos. Somente daqui a alguns anos vamos saber que efeitos esse dano teve psicológica, intelectual e academicamente na aprendizagem das crianças e suas habilidades.

“A democracia pressupõe que a ordem social provém do acordo e da autorregulação do grupo. É através do debate, da conversa pública, da identificação de problemas coletivos que uma sociedade consegue seguir adiante”

Notícias da Educação — Como as escolas e as organizações da sociedade civil podem fomentar a formação de crianças democráticas, autônomas e que saibam articular interesses nessas condições?

Bernardo Toro — A única maneira — e isso já está provado, não é especulação — é que os países comecem a desenvolver, em todos os níveis, para crianças de classe alta, média, baixa, distantes ou próximas, um enfoque pedagógico de trabalho em grupo cooperativo. Ou seja, o segredo dos países que saíram na frente é que tomaram a decisão drástica de mudar o modelo de educação magistral, da educação frontal, por um modelo de trabalho e aprendizagem cooperativo. Aqui na Colômbia, as crianças do campo (que são famosas na literatura da América Latina devido ao seu rendimento) quase não sofreram atraso porque estão acostumadas ao trabalho em grupo cooperativo com material impresso. Assim, bastavam instruções por telefone, por áudio, para que as crianças pudessem trabalhar em suas casas, ou instruções por e-mail ou SMS, “Estudem a unidade 1, façam essa atividade”. Esses alunos, com o pequeno apoio de um monitor (para atender muitas crianças), conseguiram manter o seu rendimento. Porque conheciam o modelo de trabalho em grupo e já sabiam usar os materiais de forma autônoma. Os sistemas de aprendizagem em grupo mais sólidos são os que, em primeiro lugar, têm materiais escritos — e depois têm alguns materiais de apoio, vídeos, gravações etc., mas o eixo da aprendizagem está sobre o material escrito que a criança sabe seguir. Por isso, as escolas de aprendizagem em grupo cooperativo só começam no segundo ano do primário, quando a criança já sabe ler bem, porque ela precisa saber entender instruções escritas. Nas escuelas nuevas as crianças não “recebem aulas”; todos têm o material — e mais: o material sobre o que eles querem, porque na mesma escola algumas crianças querem estudar espanhol, outras matemática, outras ciências — e alguns estão na unidade 20, outros na 30, isso não importa. Essas crianças, por exemplo, não sofreram atraso relevante durante a pandemia.

“Todos os líderes em educação, em comunicação, religiosos, políticos precisam entender que tudo o que o ser humano tem é aprendido. Isso explica a importância de que os propósitos educativos coincidam com os propósitos da nação”

Notícias da Educação — Em uma de suas palestras você disse que  “um grande líder é uma pessoa que sabe pedir ajuda”. Qual a importância das lideranças democráticas para a sociedade civil hoje?

Bernardo Toro — Essa pergunta é muito importante porque a democracia não é uma ciência, não é um partido, não é uma religião. É simplesmente uma forma de ver o mundo. Então, se você tem uma vontade totalitária, não vai aceitar a democracia de nenhuma maneira porque ela supõe que a ordem provém do acordo, da autorregulação do grupo. A ordem social, política e econômica é construída e supõe que não existe nenhuma ordem ideal em nenhum lugar do mundo. Que é através do debate, da conversa pública, da identificação de problemas coletivos que uma sociedade consegue seguir adiante. As sociedades mais democráticas do mundo são neste momento as mais avançadas. Todas as sociedades escandinavas, a sociedade alemã, a sociedade suíça e algumas sociedades do Pacífico Sul. São as mais avançadas porque conseguiram entender que estamos juntos neste mundo para viver bem e que nossa grande tarefa com a política, a economia, a educação, a arte e o amor é ver como os usamos para ter uma vida boa. Esse é o segredo. E esse conceito de vida boa é totalmente latino-americano, um conceito de vida boa amazônico, digamos. Em meio a uma crise, quando há medo e não há uma organização social forte, é possível que alguém tome o poder ou abuse da autoridade. Por que nos países escandinavos ou na Alemanha isso não ocorreu? Porque as pessoas estão muito organizadas. Na Espanha e na Itália tentaram também [se organizar], mas não conseguiram. Num momento como este, emerge a capacidade organizativa de base de uma sociedade. Nos lugares onde o autoritarismo conseguiu triunfar é porque a capacidade de organização social é baixa. Dito de outra forma, o nível de democracia de uma sociedade depende do nível de organização dos seus cidadãos. Não é possível ser cidadão se você não está organizado. A organização converte o cidadão em ator social, e se ele não estiver organizado não é capaz de ser um ator social e permite o abuso de autoridade de qualquer pessoa.

“É preciso reforçar e dizer em voz alta às crianças e aos jovens que aprendam como uma nova forma de ver o mundo: ‘Somos todos da mesma matéria. Não há diferença por cor, nem por nação, nem por origem’”

Notícias da Educação — Ao abordar o conceito de inteligência como um bem social você fala de uma passagem da inteligência guerreira/competitiva à inteligência altruísta/solidária. Como esse processo se relaciona com o trabalho em rede?

Bernardo Toro — A inteligência guerreira está montada sobre o paradigma de acumulação, poder e êxito. É um paradigma, uma forma de ver a realidade. A inteligência altruísta, solidária, está construída sobre o paradigma de cuidar de si mesmo e cuidar do outro. Como são paradigmas, são coisas aprendidas, criadas pelo ser humano. É muito importante que todos os líderes em educação, em comunicação, religiosos, políticos entendam que tudo o que o ser humano tem é aprendido. O ser humano tem uma tendência natural a aprender; absolutamente todo conhecimento que o ser humano possui é aprendido. Os nossos gestos, a forma como falamos, o idioma que falamos, como funciona nosso cérebro, tudo é por aprendizagem. Isso explica, primeiro, a importância de ter um sistema educativo adequado aos propósitos de uma sociedade; a importância de ter um sistema educativo de alta qualidade para todas as pessoas dessa sociedade; e a importância de que os propósitos educativos coincidam com os propósitos da nação, para que coincidam com os propósitos políticos, econômicos. Uma das grandes dificuldades para a transformação social, por exemplo, para a epistemologia do cuidado, é que ela está em contradição com a epistemologia da acumulação e do poder. Porque do ponto de vista do cuidado, a pergunta é: “Como fazemos para que todos os que estamos na casa comum vivamos bem?”. A outra epistemologia é: “Como acumulamos para ter mais poder, mais segurança e mais sucesso”. São duas lógicas distintas. Mas aí vem uma tarefa fundamental, que é que esta nova geração tem que ser formada na fraternidade. Eu sempre trago a frase de Bertrand Russell, que diz: “Eu sou ateu, mas devo dizer que a grande contribuição do cristianismo ao mundo é a fraternidade”. Antes do cristianismo não tínhamos uma noção de que todos somos irmãos, de que todos somos uma grande família. Mas isso deve ser ensinado, deve ser mostrado a todas as crianças porque os conceitos nacionalistas, os conceitos religiosos, as epistemologias políticas nacionalistas e religiosas estão fraturando o planeta. Uma das coisas que a pandemia está nos ensinando é que todos podem morrer da mesma forma, seja chinês, colombiano, brasileiro, africano — e isto é preciso reforçar e dizer fortemente, dizer em voz alta às crianças e aos jovens: “Somos todos da mesma matéria. Não há diferença por cor, nem por nação, nem por origem”. Isso deve ser repetido para que as novas gerações aprendam como uma nova forma de ver o mundo. Porque, no fundo, essa é uma narrativa nova, que diz “há apenas uma casa comum; há apenas um lugar no sistema solar, um único lugar no cosmos — que se chama Terra — que tem uma espécie racional que se chama sapiens sapiens; mas esses sapiens sapiens têm que aprender a viver todos juntos, e junto com todas as outras formas de vida”. É muito importante. Outra coisa também que a pandemia nos ensinou é que não bastam só os direitos humanos; os direitos da biosfera também são necessários. O melhor exemplo é a água. A água não pode continuar sendo um direito humano; ela precisa começar a ser um direito da biosfera. Porque se os animais não têm água e as plantas não têm água, nós não somos viáveis. Então, a mudança epistemológica seria realmente a da “grande casa”, da casa comum, passar do conceito de simplesmente territórios de países, de planeta, ao conceito de casa comum, que é um conceito mais compreensível, mais próximo ao afeto humano do que simplesmente o conceito de planeta Terra, ou os conceitos de países, de região, de acordo territorial. O grande conceito novo é a casa comum. É preciso dizer fortemente e repetir muitas vezes para contribuir para a narrativa da fraternidade.

“Os pais descobriram que dar aula não é fácil. Porém não descobriram o problema principal, que é como criar condições para que as crianças aprendam”

Notícias da Educação — Na América Latina estamos vendo um aumento dos movimentos culturais que evocam culturas originárias/indígenas, trazendo-as ao centro das discussões e rejeitando paradigmas coloniais. Seria um sinal de que já estamos vivendo uma nova ética?

Bernardo Toro — O século XX deu duas grandes contribuições à espécie humana: direitos humanos e as comunicações como existem atualmente. O reconhecimento dos direitos humanos, que dão identidade única à espécie humana, é a conquista mais importante do século. Veja… depois de a espécie humana já estar havia 100 mil anos sobre a Terra e as primeiras comunidades agrícolas terem surgido havia 10 mil anos — somente após 10 de dezembro de 1948 a espécie humana foi capaz de definir para si mesma o conceito de dignidade. O mundo não foi mais o mesmo depois de dezembro de 1948. E essa é uma revolução muito mais forte inclusive do que a que está acontecendo agora. Por quê? Porque nos deu um elemento fundamental para a definição de ética. O que é ética? Trabalhar para tornar possível a dignidade de todas as pessoas. O que ocorreu depois com os elementos da crise climática? Nos deu o segundo elemento fundamental da ética: cuidar da casa comum. E, à medida que descobrimos que é importante cuidar da casa comum, avançamos na ciência, e sobretudo nas ciências da Terra, nos estudos de satélites — porque até 1968 nem mesmo sabíamos que a Terra era redonda. Nos ensinavam que ela era redonda, nós acreditávamos, mas nunca tínhamos visto a Terra. Foi só com as primeiras fotos do espaço que descobrimos que o planeta é azul. Antes disso, a nossa mente humana não tinha possibilidade de representar o planeta. A partir de 1968 o ser humano tem condições mentais para poder imaginar como é o planeta.

Hoje, para todas as crianças é normal que a Terra gire, pois já viram em filmes e em tomadas espaciais reais dos satélites. Isso é uma grande revolução mental que semeou a base para começarmos a ver a casa comum. Mas qual o problema? É que essa esfera no espaço não tinha narrativa. Uma das primeiras pessoas que tratam dessa esfera girando no espaço é Carl Sagan em seu livro da série Cosmos chamado Pálido ponto azul. Dos anos 1940 estamos vindo com a nova narrativa sobre a dignidade humana, de todos os seres humanos, que ainda estamos tratando de desenvolver, porque ainda existe trabalho escravo e tudo o mais. A ela se soma essa nova narrativa dos anos 1960, de que existe um único lugar do mundo onde estamos, que é o planeta Terra, o ponto azul. Continuamos avançando. Se não fosse pelas telecomunicações, por exemplo, um brasileiro não teria a mínima noção de como vive uma criança na Nova Guiné. Pelas telecomunicações começamos a ver como vivemos, e nesse intercâmbio de observação, de voyeurismo se quiser, de “ver da janela” como o outro se comporta, descobrimos e começamos a ver as comunidades ancestrais — e começamos a vê-las num momento de crise climática. Então, as pessoas mais inteligentes, mais sábias, começaram a entender que essas comunidades estão aí há 10 mil anos e não danificaram o território. E produziram, cresceram, evoluíram, amaram e o território ficou intacto. Começaram a ser um grande referencial para o cuidado do planeta. Mas só isso não é suficiente, pois descobrimos o mais importante sobre essas comunidades, que é seu altíssimo nível de solidariedade e austeridade.

O futuro do planeta não é possível com este alto nível de consumo que temos hoje. Todos sabemos que, se seguirmos os mesmos padrões de consumo, nenhum planeta será suficiente para nós. O planeta é suficiente para todos se nos tornamos austeros. O que aprendemos com as comunidades ancestrais é que é possível sobreviver grandes períodos em austeridade e com vida boa, mas isso vai contra a epistemologia que estamos deixando. Estamos em um momento em que há coisas que estão perecendo, desaparecendo e outras coisas novas que estão surgindo, e é necessário que os sistemas educativos, os intelectuais, os líderes políticos, os líderes sociais vão ajudando a sociedade a ver que há um mundo que está terminando e outro que está nascendo. E que este novo mundo está guiado pelos conceitos de casa comum, de cuidado, de solidariedade, e eu agregaria austeridade. Austeridade elegante. Porque a austeridade é diferente da pobreza. O que é austeridade? Colocar todos os recursos necessários em um propósito, produto ou serviço que contribua para a dignidade humana, mas não colocar nem mais nem menos do que é necessário. Ou seja, precisamos de países bem nutridos, mas não necessitamos de países obesos.

 “Um país tem a educação que os adultos querem que ele tenha”

Notícias da Educação — Mais do que nunca pais e mães têm estado envolvidos nas questões educativas e escolares das crianças. Como você avalia esse fenômeno? A longo prazo, pode trazer mais benefícios ao processo formativo das crianças? E às instituições educativas?

Bernardo Toro — Essa é uma pergunta muito importante na educação atual. Primeiramente, os pais descobriram que dar aula não é fácil. Porém não descobriram o problema principal. O problema não é dar aula, é que as crianças aprendam. O problema que temos é que as narrativas que estão na sociedade são: “É muito difícil dar aulas para crianças, é muito difícil que façam tarefas…”. Porém, o que não se está dizendo aí é que agora descobrimos que o educador tem uma tarefa mais importante, que é saber fazer com que as nossas crianças aprendam. Se não houver essa mudança, perdemos tempo. Mesmo com a pandemia ainda não descobrimos que a dificuldade não está em dar aula, nem nas crianças, mas sim em como criar condições para que as crianças aprendam. Como isso não ficou claro, dizem que o problema são os livros, a internet. O que os pais deviam ter aprendido é que o mais difícil é conseguir que as crianças aprendam. Como deviam ter aprendido o difícil que é uma boa nutrição, uma saúde emocional saudável, interações produtivas. Mas temos que ajudar as pessoas a criar essa perspectiva. Para isso servem a comunicação, a educação, a política. Para poder oferecer à sociedade, neste momento de crise, narrativas muito mais poderosas que o medo e a culpa.

Notícias da Educação — Muito se tem falado sobre o quanto a nova rotina dos educadores é exaustiva, de como estão esgotados e de como tiveram, em grande parte, que se adaptar a esse enorme desafio que a Covid-19 representa. Que mensagem você deixa para esses educadores em 2021?

Bernardo Toro —  A mensagem que deixo não é para os educadores, é para os políticos e líderes educacionais. Um sistema educativo tem três níveis de complexidade. Um é o nível estrutural, que é político-institucional, que garante que você foi educado, que seus filhos serão educados e os filhos deles também. Aí estão as leis, o modelo financeiro, quantidade de cursos, quantos graus existem no começo, meio e final. Primário e secundário, enfim, toda a formação, toda a definição profissional dos administradores, o modelo de salário, de capacitação, a localização do sistema e o modelo de avaliação e méritos. Essa é a estrutura do sistema e não é algo definido pelos educadores. Isso quem decide, fundamentalmente, são os políticos e planejadores. As elites. Existe um segundo nível de complexidade no sistema educativo, que é o pedagógico. Como criamos condições estáveis para que a relação entre quem ensina e quem aprende tenha êxito? Dentro de qualquer modelo pedagógico existe uma relação entre quem ensina e quem aprende. E essa é uma relação dificilmente exitosa. O que aprendemos, o que os pais aprenderam nesta pandemia, é que essa relação educativa entre pais e filhos é muito difícil. Mas há outro grau de complexidade dentro desse sistema que é o didático. A forma como Newton escreveu os Principia naturalis de física é tão difícil que é algo dessa grossura [sinaliza com as mãos espaçadas]. Não é a forma como um jovem de 15, 16 anos consegue aprender física. Foi preciso converter essa ciência em textos mais acessíveis, colocar desenhos, ilustrações, exemplos, histórias, colocar numa sequência, colocar exercícios… foi preciso pegar todo esse conhecimento e organizá-lo de outra maneira para que pudesse ser apropriado por milhões de pessoas. Esse é o trabalho didático de um profissional. Converter o conhecimento pálido em textos, exemplos, leituras, contos, romances, filmes, documentários, materiais, exercícios, tarefas. Por que os médicos são tão bem formados no mundo? Porque o trabalho de converter a ciência médica, para que os estudantes aprendam na faculdade, é toda uma indústria que funciona em alta velocidade. O descobrimento de um método cirúrgico hoje, na Rússia, é conhecido no mundo inteiro em menos de 72 horas com os manuais, com os vade-mécuns. Porque essa é a profissão que tem isso mais claro. Que o conhecimento não convertido em didática não permite uma assimilação rápida. É o problema das indústrias culturais. Como converter o conhecimento em símbolos, significados, narrativas, conteúdos… Dentro de todo esse esquema, o educador é um participante da dimensão didática. Ele é formado para operar nesse modelo na sala de aula. De repente você o tira dessa função e o coloca para trabalhar num modelo no qual ele não tem formação, treinamento ou tradição. Que ele consiga é algo quase heroico, monumental, para os educadores da América Latina. Porque lhe alteraram todo o jogo em 24 horas. É como alguém que estivesse em uma nave espacial e lhe dissessem que precisa pegar um ônibus.

Notícias da Educação — Em tempos pandêmicos e com ensino híbrido, que perspectivas são realistas em relação à aprendizagem?

Bernardo Toro — Eu formularia essa pergunta de outra forma: como devemos nos organizar na sociedade para que os melhores saberes, tradições, ritos e mitos dessa sociedade sejam facilmente apropriáveis por cada geração? Em uma sociedade altamente informada, o recurso mais escasso se chama atenção. O recurso mais escasso é prestar atenção em algo. Essa é a questão central. Mas as crianças não vão prestar atenção nos problemas se a sociedade como um todo não disser aos jovens, não expressar, o que é importante. Dito de outra forma, uma sociedade não consegue uma educação melhor do que a que os adultos querem. Não sei se você se lembra do que aconteceu no Chile, algo que se nomeou a “Rebelión de los pingüinos. Durante o primeiro governo de Michelle Bachelet (2006-10) ocorreu uma greve estudantil do 9º ao 12º ano em todo o país. É difícil de acreditar que crianças da educação secundária paralisaram o Chile por um problema educacional, e eles aprenderam um pouco sobre a rebelião com os universitários. Bom, fizemos um encontro com alguns desses líderes, com três deles, duas meninas e um menino, em Punta de Tralca. Perguntei a uma dessas crianças: o que vocês querem com esta paralisação? Uma menina de uns 15 anos ficou me olhando e disse: “Senhor, você não pode perguntar isso pra mim”. “Por quê?”, eu disse. Ela respondeu: “Senhor, você acha que na minha idade eu posso decidir e saber qual a educação que me convém melhor? Isso não é um problema meu. É um problema de vocês, os adultos. O que posso lhe dizer com certeza é que a educação que estamos recebendo não serve pra nada”. Essa história mostra exatamente o que quero dizer. Um país tem a educação que os adultos querem que ele tenha. E essa educação não depende dos professores. Os professores são uma parte dos atores nesse jogo. Essa educação depende dos adultos, de todos os adultos que decidem, com seus comportamentos, políticas, investimentos, simbologias e narrativas, que vão dizendo à próxima geração o que é importante. Os jovens usam drogas porque os adultos lhes mostraram que isso era interessante. As crianças e os jovens são recém-chegados ao planeta. Eles não estavam aqui antes. Quando alguém chega a um país, a um lugar que não conhece, qual a primeira coisa que faz? Olha como os outros se comportam. A transformação educativa, para que seja verdadeira, não é uma questão de combinar presencialidade com o digital. É uma questão de que os dois só funcionam se os adultos são capazes de transmitir ao mesmo tempo para a próxima geração o que querem que ela aprenda.


Pergunta-bônus

Notícias da Educação — No romance O jogo das contas de vidro (1943), de Herman Hesse, uma passagem diz: “O que mais necessitamos é de professores, homens que ministrem à juventude a capacidade de medir e de julgar e que sejam seus modelos no respeito à verdade, na obediência ao espírito, no serviço à palavra”. Se pensarmos nos professores da afirmação como sendo o sistema educativo num sentido mais amplo, ainda é possível articular esse pensamento de Hesse às necessidades educativas atuais dos nossos jovens?

Clique aqui para ler a resposta de Bernardo Toro no site do Itaú Social.

Foto: Arquivo Pessoal