A leitura partilhada como lugar de liberdade: uma proposta de Cecília Bajour
Em artigo para a Blimunda 107, publicação da Fundação José Saramago, Andreia Brites destaca produção de Cecília Bajour, especialista em literatura para crianças e jovens, inclusive sua análise de álbuns ilustrados.
Veja a publicação original no site da Blimunda 107.
A leitura partilhada como lugar de liberdade: uma proposta de Cecília Bajour
A Biblioteca Nacional do Perú, que comemora 200 anos de existência, tem uma nova coleção dedicada à promoção da leitura. Chama-se Lectura, Biblioteca y Comunidad e conta com nove títulos editados entre 2020 e 2021 por especialistas na área da mediação leitora, das bibliotecas e da literatura. Todos têm em comum propostas de reflexão sobre promoção da leitura, sobre o papel transformador das bibliotecas e sobre as políticas públicas nesta área, seja através de ensaios ou conferências, relatos de projetos no terreno ou entrevistas e conversas. Os textos são recuperados de outros livros ou artigos publicados em revistas e coligidos nestes volumes com nova organização. Alguns deles estão a ser editados no Perú pela primeira vez.
Em cada volume consta uma introdução da responsabilidade da Biblioteca Nacional que justifica a aposta: “De esta manera, la Biblioteca Nacional del Perú espera contribuir a la reflexión y a la generación de conocimiento sobre prácticas y espacios que son de gran valor para la construcción de una ciudadanía crítica y de una sociedad democrática”.
Todos os livros podem ser requisitados presencialmente ou à distância (versão e-book) através do site da BNP. Também a distribuição das edições impressas a nível nacional é gratuita. Na coleção constam nomes como o do brasileiro José Castilho, do estado unidense R. David Lankes, do peruano César Castro ou da colombiana Sílvia Castrillon.
A Biblioteca tem organizado sessões online de apresentação de alguns volumes com a presença dos autores e comentários de especialistas que podem ser ainda visionadas através do canal de youtube da BNP.
Co-criação e versão
A argentina Cecília Bajour também colabora com esta coleção com o livro intitulado “Literatura, imaginación y silencio: desafíos actuales en mediación de lectura”. Reconhecida especialista de literatura para crianças e jovens, a autora discorre sobre três eixos que se tocam em defesa da criação de um espaço subjetivo de leitura. Entre eles, o silêncio, tema sobre o qual a investigadora se tem debruçado desde há anos, nomeadamente na análise de álbuns ilustrados, com e sem texto.
Neste caso, os três tópicos são pensados a partir da relação de mediação e não exclusivamente centrados na interpretação literária e artística do objeto livro. Todas as ferramentas dos estudos literários, defende a especialista, são pertinentes para uma descodificação mais profunda e crítica das obras. Desta forma, o mediador poderá escolher que livros melhor potenciam uma relação mais estimulante com o leitor que, no ato de ler, se depara com inferências, referências, vazios, espantos. Ainda, mesmo que o desafio se apresente aparentemente menos acessível, serão estes livros os que melhor possibilitam o exercício do diálogo na mediação.
Cecília Bajour fala na co-criação de interpretação entre quem medeia e quem lê e ouve ler. O diálogo em torno da leitura deve ter em atenção os momentos de silêncio e percebê-los à luz do tempo do pensamento sobre o dito e o não dito, a sua relação com as referências e imaginação de cada um e, num subsequente espaço de diálogo, é essencial que os que ouvem, mas sobretudo quem medeia, preste atenção dedicada a quem fala, sem cair na tentação de condicionar o que ouve à sua própria experiência leitora. Se o fizer, instrumentalizará o diálogo e estreitará múltiplas hipóteses de leitura, entre as quais seguramente uma ou mais sobre as quais nunca houvera pensado.
A tentação de conduzir um grupo perante um momento de silêncio é grande para o mediador e é imperativo que tenha uma consciência clara do significado destes momentos para não boicotar o processo subjetivo de cada um. Se o não fizer, dando espaço ao pensamento durante a leitura e ouvindo e promovendo a atenção sobre cada opinião e juízo, chegará a interpretações co-criadas, que nascem precisamente do diálogo sobre a diversidade de experiências leitoras.
Aquilo que cada leitor traz de si para o que lê, as suas emoções, as suas memórias, o seu contexto e as suas referências, abrirá portas aos outros para novas possibilidades até então escondidas, ignoradas. E novas teias de relação se tecem, entre acordos e desacordos, vazios para os quais surgem sentidos e questões novas que se colocam. Aqui é igualmente relevante atentar que a diversidade não deve ser reorganizada num produto único. A leitura partilhada e a co-criação de interpretações só permanecem vivas se respeitarem a pluralidade, sem garantir resposta para todos os desconcertos e muito menos sem defender que só uma reposta é válida.
“Asumir que las significaciones son siempre sociales lleva a ver que los otros siempre pueden sorprendernos y enriquecer o desestabilizar productivamente lo que pensábamos sobre ese texto compartido hasta el momento de compartir la lectura. La convicción sobre la provisoriedad y el carácter incompleto de nuestras propias significaciones es una puerta hospitalaria a que las significaciones de otros se entrelacen con las nuestras.” (p.35)
A partilha oferece ao leitor novas versões da sua primeira interpretação e a cada nova partilha o processo pode repetir-se noutra direção, em função de novas subjetividades, novos silêncios, novos diálogos. Nesse sentido, Bajour aponta para a leitura como versão, porque cada um tem a sua num determinado momento, e nenhuma é total e definitiva. E cabe ao mediador implicar-se na co-criação de novas versões da sua própria leitura, tanto quanto deseja que aconteça com o público com quem está a ler. E surpreender-se com aquilo que os outros trazem para a sua experiência. Se tal não acontecer, falha todo o processo porque significa que o mediador não consegue dominar as ferramentas que lhe permitem essa abertura. São elas, no caso deste livro, a imaginação, o silêncio e o manejo da ficção.
Imaginação
No primeiro artigo do livro, a investigadora propõe uma enumeração e análise de várias estratégias literárias que promovem a imaginação, nomeadamente através de metáforas e metonímias que obrigam a um olhar novo, de um ângulo inesperado, para um objeto ou situação familiar, reconhecível ou quotidiana. Através destes dois grandes eixos retóricos, associam-se elementos semanticamente distantes, criam-se estranhamentos e desvios. Estes também acontecem através de outra estratégia: a do humor. Através do absurdo, muitas vezes associado ao discurso hiperbólico, também se altera a perspectiva sobre o mundo, desconstruindo-se cristalizações comummente aceites no discurso e no pensamento. A imaginação acontece no texto e o leitor acede-lhe e interage com ela no processo de leitura.
“Es decir, la imaginación hace volar, pero en vez de atribuir ese vuelo a la magia o la ensoñación, todos podemos conocer de cerca y manejar los resortes de las diferentes máquinas metafóricas para volar y eso nos vuelve mejores pilotos de vuelos imaginarios.” (p.26)
Daí que um mediador que por um lado domine e reconheça estes processos de construção retórica (textual e visual) e se dedique a prestar-lhes atenção, conseguirá com mais facilidade encontrar-se com a imaginação, isto é, recriar a leitura através da desnaturalização, do desvio do literal. Logo no texto são-lhe oferecidos caminhos para a sua versão e para que potencie a co-criação de múltiplas versões, uma para cada um dos leitores com quem partilhar a leitura.
“Abrir el juego supone no anteponer ni privilegiar la construcción personal de sentidos a las de otros, sino esperar sin ansiedad ni apuro ese despliegue en el modo y el estilo de cada uno y, sobre todo, crear una atmósfera que brinde confianza a los lectores y lectoras para que sus caminos de interpretación y de opinión sobre los textos se abran en múltiples direcciones.” (p.33)
Silêncio
“Además del carácter social del silencio, su pluralidad y su esencialidad residen en la diversidad de silencios devenidos del carácter situado, histórico, cultural y a la vez singular de los actos de comunicación. Los silencios no son una entelequia, una abstracción, ni ocurren aislados de nuestros andares en la porción del mundo en que respiramos y vivimos.” (p.42)
Quando descreve a sua noção de silêncios, Cecília Bajour chama a atenção, para além dos silenciamentos políticos e para a sacralização cultural do silêncio (no singular), para as práticas dialogantes e os lugares que os silêncios ali ocupam. Há os silêncios de quem fala, quando cala, ou se quisermos, o não dito e o seu interstício. Há os silêncios de quem ouve e de como os manifesta na sua linguagem não verbal. Nesse contexto, a autora destaca a disponibilidade para que se crie uma rede de significação para os silêncios como limpeza de ruídos, atenção aos outros sentidos e espaço de liberdade para o outro, um convite à fala do outro, ao diálogo efetivo. Em suma, à atenção consciente, demorada, dedicada.
Porém, há que libertar os silêncios da sua sacralidade instituída. Se, num diálogo social, estes são evitados por causarem desconforto (e não deveriam sê-lo, nesta lógica de atenção e tempo), o contexto de leitura em voz alta em sala de aula também sofre com a sacralização do silêncio que é imposto trazendo ao momento um conjunto de elementos ritualizantes.
“La lectura en voz alta de un texto literario – tan cargada de rituales o de momentos fijos pautados por algunas posturas metodológicas que a veces son respetadas a ultranza como dogmas – puede devenir en una experiencia en la que se arriesga con azares, otras respiraciones y otros modos de pensar el lugar de los lectores y lectoras en la construcción de significados.” (p.52)
Para o contrariar, Bajour recomenda sucintamente que os mediadores se detenham criteriosamente na escolha dos livros a ler em voz alta. Escolher um livro equilibrado, sem excesso de informação textual, visual ou paratextual, que não seja verborreico na sua construção e que abra espaço para os vazios questionadores, para o sugerido, para o implícito, é, segundo a especialista, um caminho para cativar o público para silêncios livres, que resultam do diálogo com o próprio objeto de leitura, acompanhados da devida atenção do mediador.
Quando a ilusão da realidade se imiscui no escrito
Uma das principais razões pelas quais se considera que ler literatura é mais enriquecedor do que ler paraliteratura ou não ficção simplista tem a ver com a riqueza retórica do texto literário, do qual já foram mencionadas nesta resenha algumas características.
A ficção, enquanto chapéu que pode cobrir a narrativa, a poesia e o drama, e o híbrido que é o álbum ilustrado, estabelece ligações com as experiências e as referências do mundo real, e por isso também nos permite reconhecermo-nos nela. Porém, cria desde logo, em diversos níveis, pactos ficcionais com o leitor, isto é, propõe-lhe que aceite aquilo que lê com a consciência de que não é real mas como se fosse. Há um jogo basilar neste pacto que funda muito do que é a essência da recepção leitora.
Só assim se permitem emoções como a tristeza, a revolta, a compaixão, o espanto, a surpresa, o riso. Mas também uma amplitude de juízos que funcionam livremente por daí não advirem implicações concretas nas relações humanas, sociais, profissionais, familiares. Ainda, sem este pacto, a janela para o mundo e para o outro em que a leitura também pode e deve resultar, não aconteceria.
Ora, vivemos hoje num contexto político, social e cultural que põe em risco o lugar da ficção quando se descura a veracidade da informação, quando se substitui o verdadeiro jornalismo por superficiais e tendenciosas notícias, quando a opinião vale mais do que o facto comprovado pelo simples facto de que é transmitida com uma retórica emocional de identificação com o seu potencial leitor modelo.
Cecília Bajour fecha o livro com um artigo sobre todas estas questões, a que acrescenta ainda o politicamente correcto e a tradição moralizante e didática do livro para crianças e jovens como perigos efetivos à liberdade de pensamento e ao sentido crítico. Recorre a dois exemplos artísticos: o de um anúncio que se tratava de uma ficção integrante de uma exposição mas que o público, num primeiro momento considerava verdadeiro, e o de um reconto da história tradicional dos Três Porquinhos dando voz de narrador ao Lobo Mau, numa metaficção que coloca em causa o lugar da verdade. Assim, tenta demonstrar que os elementos provocatórios de ambos chamam precisamente a atenção para a importância de reconhecer os artifícios estéticos como elementos inerentes à criação ficcional, bem como as estratégias de manipulação a que cedemos voluntária ou involuntariamente.
É justamente através da arte, e no que concerne a leitura em particular, da literatura e do álbum ilustrado de qualidade que se pode combater a instrumentalização do politicamente correcto, do pensamento unívoco, do determinismo da educação emocional, da desficcionalização (segundo a terminologia usada pela autora).
“(…) las ficciones y sus propios mecanismos de verosimilitud son una necesidad vital para pensarnos y pensar el mundo. La activación de los imaginarios transformadores se nutre en gran medida de las ficciones que construimos y recibimos como espectadores, espectadoras, lectores, lectoras, escuchadores y escuchadoras. La apropiación de saberes sobre el cómo de las ficciones puede ser parte de prácticas emancipatorias. Saber cuál es la materia de los sueños, no para atraparlos sino para ser más libre, es uno de los desafíos de estos tiempos.” (p.79)
Notas finais
Ao ler este conjunto de pequenos ensaios é muito provável que o leitor mediador desperte para uma reflexão sobre o naturalmente intuído através dos exemplos plasmados. Eventualmente dialogará com a sua experiência e ver-se-á na contingência de reinterpretar os textos e as ilustrações que escolhe para levar aos grupos com quem lê. Será uma das tarefas mais difíceis e escorregadias, a de não se deixar manietar por teorias literárias que não consegue depois desmontar e recriar subjetivamente de acordo com a sua própria prática e o contexto particular em que se encontra.
Por outro lado, há na mediação regular o risco de se passar por cima de uma reflexão ponderada que, com recurso a ferramentas teóricas da área da educação, psicologia, literatura e outras artes, possa contribuir para uma melhor empatia com o público e com o objeto e universo que se lhe propõe a cada momento.
Este volume tem o mérito de tecer linhas de pensamento rigorosas e exigentes sem oferecer estratégias prescritivas, oferecendo inúmeras referências literárias e teóricas onde cada leitor pode continuar a sua busca por um constante espelho que lhe devolva com distanciamento o que muitas vezes a sua auto-análise não lhe permite. Da bibliografia que sucede a cada um dos ensaios constam, para além de livros, artigos online, nomeadamente na revista Imaginária.
Por fim, salienta-se que o leitor mediador não se resume ao promotor de leitura. O leitor mediador é aquele que lê a par, que lê com alguém com a consciência de que ler ajuda a pensar e a sentir e que fazê-lo em conjunto potencia uma abertura ao mundo e um sentido de identidade.